segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Espaço curvo e finito

Oculta consciência de não ser,

Ou de ser num estar que me transcende,

Numa rede de presenças e ausências,

Numa fuga para o ponto de partida:

Um perto que é tão longe, um longe aqui.

Uma ânsia de estar e de temer

A semente que de ser se surpreende,

As pedras que repetem as cadências

Da onda sempre nova e repetida

Que neste espaço curvo vem de ti.

José Saramago

domingo, 11 de novembro de 2007

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

Ferreira Gullar

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Desafinado



Quando eu vou cantar, você não deixa
E sempre vêm a mesma queixa
Diz que eu desafino, que eu não sei cantarV
Você é tão bonita, mas tua beleza também pode se enganar
Se você disser que eu desafino amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm o ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de anti-musical
Eu mesmo mentindo devo argumentar
Que isto é Bossa Nova, isto é muito natural
O que você não sabe nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolley-Flex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Este é o maior que você pode encontrar
Você com a sua música esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
Que no peito dos desafinados também bate um coração
Tom Jobim

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Dou-me de presente todas as idéias. Só não me dou de presente a idéia de infinito. Não me acostumei em vida a justificar qualquer hierarquia, não me acostumei a pensar a desigualdade.
A relação do homem com o infinito não passa pelo campo do saber. O infinito é um desejo que se nutre de sua própria fome de... infinito!
Eu, um metafísico?! De jeito nenhum. Encantam-me os paradoxos. Ou melhor: sou vítima dos paradoxos.
Se levanto o punhal para assassiná-los, os paradoxos zombam de mim. Quanto mais zombam de mim, mais os admiro, por sua inconsistência sedutora.
Ah! Os paradoxos!... Tento corrigi-los. Ossos do ofício de quem foi um dia revisor de jornal!
Graciliano Ramos

“Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades em que ele não estava; quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo um odre; e como todo transportador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em mira sobre seu agir e pensar.”
Nietzsche

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Perante a lei

Há uma porta que dá para a lei. Diante dela, um guardião, o guardião da
porta da lei.
Um homem simples chega e pede para entrar. O guardião responde que,
naquele dia, não é permitido entrar.
O homem pensa um pouco e pergunta quando poderá entrar. O guardião
responde que de repente, mas não agora. Como a porta da lei está
aberta, o homem simples se agacha para olhar para dentro por entre as
pernas do guardião. O guardião impede o homem de olhar e o adverte que
lá dentro há outras portas e outros guardiães, cada um mais forte e
feroz que o outro.
O homem simples não imaginava encontrar obstáculos, pois sempre pensara
que a lei deveria ser acessível a todos os homens.
O guardião lhe empresta um banquinho para que possa sentar-se à porta
da lei e ficar esperando a hora de entrar. Passam-se os dias e os anos.
O homem simples continua perguntando quando poderá entrar. O guardião
lhe dá respostas vagas e impessoais, repetindo sempre que a hora de
entrar ainda não chegou.
O homem simples tira a roupa do corpo e tenta subornar com ela o
guardião da porta da lei. O guardião não recusa: “Aceito, para que você
não diga que não tentou tudo. Aceito, mas ainda não posso permitir a
sua entrada”.
Com o passar dos anos, o homem simples maldiz seu destino perverso, de
dor, sofrimento e velhice sem poder cruzar a porta da lei, que ali
continua, diante dele, emanando uma claridade que ofusca seus olhos
cansados. Nada lhe resta senão a morte. Agonizando, ocorre-lhe
perguntar ao guardião por que durante todos aqueles anos em que
esperou, não apareceu nenhuma outra pessoa pedindo para entrar pela
porta da lei.
E o guardião responde: “Ninguém quis entrar por esta porta porque ela
se destina apenas a você!... Agora, com sua morte, terei de fechá-la”.
Franz Kafka